Escritos de Rafael Perfeito

terça-feira, 5 de junho de 2012

Respeito

Goya

O moleque descia do morro do Pavãozinho em direção à praia de Copacabana, desgarrado, feliz, ignorando os gritos da mãe.

No sinaleiro, já perto da Avenida Atlântica, trombou com e quase derrubou um senhor velhinho, da silhueta grave. A mãe o alcançou e disse: "Peça desculpas ao senhor, Dorival. Correr na rua é falta de educação e você tem de respeitar os mais velhos!"

- Desculpa! - gritou o menino alegre, olhando em direção ao senhor enquanto corria para atravessar a rua e sumir na areia.

O sinal vermelho ardia. O idoso passou lentamente na frente dos carros, a bengala a pressionar o chão com mais força.

- Crioulo safado! Se fosse na época da Revolução eu te torturaria até a morte! - pensou, relembrando os áureos tempos.


sexta-feira, 1 de junho de 2012

Dramas da Modernidade II


Depois de dois meses engaiolado por conta de um pós operatório, ainda não liberado pelo médico, saí feliz de casa para dar uma volta de bicicleta.

Fui pensando em como são incríveis o cérebro e corpo humanos. Depois de tanto tempo sem montar a bike foi só subir que toda a destreza instalou-se, como se eu nunca tivesse deixado de andar. Fui ao parque, desci morros de grama, desviei de carros, pulei meios-fios. O vento na cara e a liberdade nas rodas!

Perto de casa fui pular da calçada para o asfalto, em alta velocidade. Vinha um carro, há uns 20 metros, no mesmo sentido, e ninguém na contra-mão. Tempo calculado, pulei. Quando os pneus tocaram o asfalto, meu pé (não andem de bicicleta usando chinelos!) escorregou do pedal e imediatamente pensei: "fudeu!".


Caí. Ainda dei um impulso na bicicleta que desabava para não ir de cara ao chão. Consegui fazer um rolamento de judô (finalmente aquelas aulas tiveram um propósito, além de aprender a contar até dez em japonês) bem meia boca, ralando o ombro e as costas todas no chão. Parei estatelado na contra-mão. Foi o pior acidente de bicicleta que tive desde os 10 anos de idade, quando atropelei um carro e perdi os dentes de leite que me restavam.

Enquanto eu me levantava, percebi que o tal carro saía de sua via e parava na contra-mão, bem ao meu lado. O vidro se abriu e eu, preto de asfalto e vermelho de sangue, tentava desempenar o pneu da bicicleta.

Olhei para o motorista, segurando o choro. Ficamos uns 10 segundos nos olhando, um silêncio sepulcral. Até que ele resolveu quebrar o gelo:

- Você sabe onde fica a escola classe da 314 sul?

Fiquei encarando-o  mais uns 10 segundos. Encarei também a mulher sentada no banco de passageiros, igualmente impassível. Havia algo de muito estranho na situação toda.

- Você quer o maternal ou a escola de primeira à quarta, porque há duas aqui... - respondi, limpando o sangue dos quadris.
- De primeira à quarta.
- Ah, então pode sair da contra mão e virar à esquerda ali depois da banca de jornal. Você avistará a escola.
- Muito obrigado!
- Não há de quê.

Ele seguiu seu caminho. Eu montei na bicicleta troncha e fui para casa, sujo de asfalto, cheio de sangue e incredulidade.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A bunda


18 horas. Estou sentado em uma cadeira reclinável na emergência esperando a medicação. Febre e garganta fechada. Ótimo acontecimento pra não ir à escola e ver Fluminense x Boca Juniors na tv, logo mais.

Observo as pessoas em seus pequenos dramas hospitalares enquanto dou discretas gargalhadas com o Bukowski. Na poltrona a meu lado um velho gesticula, seu soro já acabou há muito tempo. Faz menção de que arrancará tudo e irá embora quando uma das enfermeiras, uma grandona que deve aplicar terríveis injeções, o ignora. Trocamos aquele olhar de: "É brincadeira?".

Nesse momento reparamos em um casal à nossa frente. Ele, uns 27 anos, deitado, soro no braço, enorme, físico de jogador de basquete amador, olhar grato e meigo, muito meigo, dirigido ao dono de pequeninas mãos, dentro das quais as suas pareciam de menino, tamanha a segurança e o carinho recebidos. O outro, mesma idade, todo cuidados, bem mais baixo e muito magrelo dentro daquelas calças jeans apertadas de punk, do gigantesco cinto de couro com tachinhas e da miniblusa rosa.

- Hmmmm! Olha lá o jeitinho como eles se dão as mãos! E eu que achei que fossem irmãos.
- Tempos modernos! - Me limitei a dizer, enternecido com o carinho do casal gay e não querendo desapontar o velho ranzinza, que buscava divertir-se à custa da viadice alheia.

Das quatro enfermeiras que ali estavam trabalhando, uma me chamou a atenção. Magra, mulata, os crespos e bem tratados cabelos presos num coque acima do pescoço. Olhar e movimentos extremamente vivos, complacentemente simpáticos, deliciosamente sensuais. Torci pra que fossem aquelas mãozinhas a manusear minha bunda. As mãos da outra não... a outra devia dar injeções igual esmurrava o marido.

Escuto meu nome sendo chamado:

- Antônio Augusto!
- Eu aqui!
- A-ham! Muito bem. - Aproximou-se a mulata enfermeira. - O senhor queira me acompanhar à outra sala.
  Suas palavras tinham um leve sarcasmo. Percebi que ia gostar daquilo tudo.

Sorriso vai, sorriso vem, os olhares ficam. Ela pede para eu afrouxar a calça e me deitar de bruços.

- Primeiro o anti-inflamatório, que esse não dói.
- Manda brasa!
- Agora uma que fará você se lembrar de mim: a benzetacil!
- Manda brasa! Desde a operação de hemorróidas tenho absurda resistência pra dor!

A enfermeira sorriu. Apertou um pedaço de minha bunda entre seu polegar e indicador e aplicou a injeção. Não doeu. Levei um tapinha e ouvi de novo o comentário:

- Garanto que de noite você se lembrará de mim! E nada de pedir massagem pra namoradinha!

3 da manhã. Insônia. A febre não sumiu por completo. O Fluminense foi eliminado com um gol aos 45 minutos do segundo tempo. A namorada não apareceu. Não posso beber por causa da benzetacil. Me mexo no sofá, assistindo a uma sofrível reprise de MMA. Minha bunda dói.  Dói e coça. Minha bunda dói e coça e incomoda muito! A vida é uma merda mesmo! Tiro o cinto, enfio a mão dentro das calças. Coço a bunda e percebo algo grudado. Arranco, perdendo alguns pelos.

Era um band-aid com um número de telefone e um pequeno recado rabiscado:

"Adorei sua bunda. Jéssica".


sexta-feira, 27 de abril de 2012

Plim Plim

Fui outro dia a um recital de poesias do poeta Geraldinho Carneiro. Qual a minha surpresa quando, além do poeta, me deparei com a musa. Não só a dele, mas com uma que nos acompanha na sala de jantar, nos consultórios de dentista e, quiçá, um dia, nas barbearias e banheiros.

Comovi-me com a situação: a musa a declamar as poesias de Geraldinho! Musas televisivas nunca haviam feito a minha cabeça, mas ali, quando os olhos dela se dirigiram ao breu do meu setor na platéia, eu me apaixonei: era óbvio que a musa declamava para mim!

E a cada bela poesia de incentivo ou aquele anjo ia descendo ao meu umbral, ou, enebriado, eu me elevava ao seu olimpo, içando-me pelos cabelos, com minhas próprias mãos, verdadeiro Barão de Münchhausen a sair da areia movediça. No delírio até cabelos eu tinha.

Escrevi, imediatamente, um poema à sua pessoa.

Acenderam-se as luzes, cessaram os aplausos. Me enchi com a coragem própria aos meninos idealistas que se lançam à guerra. Prostrei-me diante de Mariana Ximenes, com a resolução nos olhos e o poema na ponta da língua.

"É simples", pensei. "Declamo a poesia e a chamo para jantar!"

Quando a metralhadora de seus olhos encontrou-se com os meus, respirei fundo e...

_ Ma... Mariana... me dá um autotógrafo e tira uma fofoto comigo?


sábado, 14 de abril de 2012

A composição do ser humano



Antônio Augusto conversa com uma criança na sala de espera da UTI:

_ Você tem quantos anos?
_ 12.
_ Tá rezando por quê? Quem tá lá dentro?
_ Minha mãe. E você, tá com quem?
_ Eu? Ah, ninguém não... eu tava ali na proctologia e resolvi dar uma passeada. O que tem sua mãe?
_ Ela fez uma cirurgia. Botou um cateter pra tirar água do cérebro.
_ Hmmmm! Você sabia que a água é o maior componente do nosso corpo?
_ Ah é?
_ Sim. O ser humano é composto por 63% de hidrogênio e 26% de oxigênio. Depois tem mais 9% de carbono.
_ Só deu 98%.
_ 1,25% de nitrogênio, 0,25% de cálcio, 0,19% de fósforo, 0,04% de sódio e, finalmente, 0,00004% de ferro! Pronto!
_ 0,00004?
_ Perfeitamente.
_ Aí só deu 99,73% e alguns quebrados! O senhor tem certeza desses valores?
_ Tenho, sou professor de química. Você é bom em matemática, hein garoto?
_ É... dizem que sou meio superdotado. Mas e o restante? Os outros 0,27% que compõem o ser humano?
_ Não sei... a ciência não sabe. Nunca determinaram. É uma incógnita. Um mistério!

O garotinho olha pelo vidro e vê a mãe dormindo do outro lado.
Seus olhos adquirem um brilho incomum para uma mente de 12 anos de idade.

_ O que passa, moleque?
_ Será então que esse restante é a alma? O imponderável? Será que é Deus?????
_ Nah, meu filho... eu diria que é filha da putice mesmo.

sábado, 7 de abril de 2012

Arbeleologia


Eis que aparece em meu caminho
a outrora perdida cidade
descortinando-se mansinho
ante esta tranquila vontade

Ando pelas ruas de mistério
com critério ergo suas ruínas
de um passado cheio de impropérios
paciente cirzo minhas rimas

E com as mãos vou tateando
descobrindo-te com cuidado
escavando até dentro quando
do seu íntimo estiver guardado

Explorando a suave donzela
da qual hoje conheço o prólogo
minha Atlântida linda Arbela
quero ser seu maior arqueólogo!


sábado, 24 de março de 2012

É melhor não...


Saí da portaria de meu prédio de shortinho de corrida, sem camisa, texto do mestrado embaixo do braço, sunga e bronzeador nas mãos, quando escuto:
- Com licença!
- Opa!
- Eu sou a Sister Junko e essa a Sister da Silva, o senhor mora aqui?
- Eu moro aqui, já o Senhor eu não faço ideia!
- Hahaha! Mas nós sabemos onde, nós sabemos onde! No nosso templo! Gostaríamos de conversar um pouco com o senhor e depois vamos fazer uma oração. Você tem um tempinho?
- Olha, é melhor não... eu tava indo ao clube e preciso ler esse texto.
- Será muito rápido!
- É melhor não...
- Se o senhor quiser, podemos agendar uma visita para outro dia!
- Agendar? Hmmm.... vamos logo com isso! Façamos o seguinte: sentemos ali?


Caminhamos para um confortável banquinho circundado de pequenos e simpáticos arbustos. Sister Junko, de origem japonesa, sentou-se ao meu lado, uma mãozinha depositada sobre a outra, em cima das pernas delicadamente cruzadas. Muito santa, muito correta... muito bonita. Sister da Silva, negra, insegura, muda e olhando pro chão.


- Vocês são mórmons, né?
- As pessoas nos chamam assim. Mas preferimos nos chamar de membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos dias.
- Ah...
- O senhor tem religião?
- Duvido que Ele tenha.
- Hã?
- Não, não... sou agnóstico.
- O senhor sabia que Jesus foi enviado por Deus e que ele sofreu muito para expiar nossos pecados?
- Jesus... Jesus...
- Jesus!! O senhor não sabe quem é Jesus????? É este aqui, ó, na capa de nosso livro.
- Não, não... a senhorita deve estar enganada, esse aí não é Jesus Cristo. Não pode ser Jesus Cristo.
- Ora, mas como não!
- Não... Jesus Cristo, minha querida, era negão. (Sister da Silva tira os olhos do chão).
- Mas como???
- É... não era assim um Mussum, mas tava longe de ter esse cabelinho dourado e esses olhos de Frank Sinatra aí.
- O senhor está enganado! Olha ele aqui na cruz, onde foi pregado para salvar voc...
- Essa túnica! Essa túnica, por exemplo, onde ele tá enrolado, o colobium. Isso aí só apareceu no século VI depois Dele. Antes do século VI, Jesus aparecia peladão na cruz, com o pinto balangando e tudo. (Sister da Silva cobre o rosto).
- Oh! Mas o nosso senhor Jesus Cristo era puro!
- Era, era sim. As pessoas que olhavam para a sua imagem é que não eram! Sabe, naquela região os homens são conhecidos pelo taman... ah, deixa pra lá. 
- ...
Fato é que a Igreja ficou com medo e tampou o dito cujo, depois pintaram o cabelo do rapaz e enfiaram uma lente de contato nos olhos dele. (Sister da Silva arregala os olhos para os céus)
- Aqui está o nosso endereço, caso o senhor queira buscar mais conhecimento e um rumo para a sua vida. Obrigada pela oportunidade de disseminar a palavra do nosso Senhor. Adeus.

Sister Junko fez menção de levantar-se, Sister da Silva nem sabia mais onde estava. Segurei a mão da irmã japonesa:


- Mas nós não íamos fazer uma oração?
Sentando-se, a discípula da Igreja do nosso Senhor Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias espalmou as mãos e fechou os olhinhos:
- O Sacerdócio A....
- Eu fico imaginando... já pensou se Cristo, sem o paninho, começasse a ser adorado pelas mulheres como uma espécie de deus da fertilidade, um Príapo dos novos tempos?
- Príapo? - Sister da Silva saiu de seu silêncio, olhando-me nos olhos.
- É, um deus grego que vivia de pau duro.


Sister Janko já corria em direção à W3. Sister da Silva ia atrás, com um sorrisinho no canto da boca, posso até jurar! Peguei meu bronzeador e disse:
- Eu avisei que era melhor não...


Príapo, de Poussin. 
http://selavy.wordpress.com/2009/03/30/1203/ Informações sobre o quadro

domingo, 18 de março de 2012

A Dama de Ferro


Tudo acabou no dia em que fomos assistir Margaret Thatcher no cinema:

_Eu tenho de ser tratada como uma rainha! Igual no filme, ouviu??? COMO UMA RAINHA!

Foi isso que ouvi da boca dela, aos berros, quando levantei a voz, ante os constantes absurdos aos quais vinha sendo submetido.
E a frase veio com expressão de Dama de Ferro, quiçá do alto do trono, a olhar com ojeriza para a plebe ignara.

Ora... uma rainha busca súditos, não um amante. Busca servidão, não companheirismo. Na-na-ni-na-não!!!

Meses mais tarde, arrependida, me ofereceu o trono mais alto da família. Quis inverter a situação. Veio beijar a minha mão, como a demonstrar que eu também possuía sangue azul. Não adiantou.

Ela não sacou que, no amor, eu sou comunista.
E ela nem era a rainha! Só primeira ministra! 



sábado, 17 de março de 2012

Narcóbito Hático



Dizem ser o hábito o narcótico da imaginação.
Por isso tenho o hábito de utilizar narcóticos.
Narcotizado, esqueço que o hábito é hábito.
Desabituado...
crio de montão!