Escritos de Rafael Perfeito

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O Sapo e o Escorpião

(ou de como ninguém foge de sua natureza) 


Olimpíadas de Munique, 1972

Quatro dias após o sequestro e assassinato de 11 atletas israelenses pelo grupo revolucionário palestino "Setembro Negro", estavam todos a postos, inclusive o Mossad, serviço de inteligência israelense, no Ginásio Ftäs Harden, à espera de um alento ante a recente desgraça. Toda a graciosidade dos movimentos das ginastas parecia, por um momento, fazer esquecer a política mundial.

A ginasta russa aterriza sobre seus pés tremelicando levemente. Ergue o queixo e empina o nariz. Os aplausos ecoam. Munique está feliz! Nastassja, a favorita, espera as notas.

1o jurado: 9.75
2o jurado: 9.4
3o jurado: 9.91
4o jurado: 7.1
5o jurado: 9.4

A pequenina e formosa atleta russa retira-se, pensando em qual erro mínimo não teria conseguido dissimular ante o olhar escrutinador daquele jurado...
Sob o som da Cavalgada das Valquírias, de Wagner, a atleta alemã toma o tablado. Poderosa, porém tensa, aterriza de maneira estabanada, após ir ao limite em sua última técnica, e dobra o calcanhar direito, torcendo-o imediatamente. Segura a dor e sorri, glacial.

1o jurado: 8.7
2o jurado: 8.75
3o jurado: 8.5
4o jurado: 10
5o jurado: 8.8

A menina de Israel, novata, carrega em seus ombros a responsabilidade de homenagear, com a medalha de ouro, seus colegas mortos. Encanta a todos com sua leveza e sobriedade. Pousa suavemente num gesto preciso e leva o ginásio à loucura! De olhos fechados, sabe, pela reação da platéia, que suas 3 primeiras notas foram um 10! Sentindo-se com a mão na medalha de ouro, abre os olhos e aguça os ouvidos.

O sistema de som do ginásio anuncia:
 4o jurado...       2,35!

Um homem na platéia aciona o walkie-talkie:
- Joshua, por favor, quem é o jurado número quatro?
- É aquele ali, chefe.
- Qual?
- Aquele ali, o do bigodinho...

E dessa maneira, 27 anos após forjar espetacularmente a sua morte, Adolf Hitler foi preso pelo Mossad.


A prova de que Adolf Hitler não morreu.



segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Samba Enredo


Chegou ao samba sem nem saber como. Viu o endereço em casa e em 40 minutos estava lá. Sua determinação era tamanha que, mesmo sem conhecer o local, chegou sem errar o caminho. Ao sair do carro, atinou para este fato. Quando estava paranóico tinha o costume de errar todos os caminhos, mesmo os mais familiares, pois fazia curvas no asfalto com a mesma inconstância que ideias psicóticas e sem nexo lhe agitavam o cérebro.

Do estacionamento escutou o zumbido do samba e o burburinho excitado das pessoas cantando e dançando. À mesa dos músicos sentavam umas 10 pessoas, entre eles, imerso incompreendido em seus acordes, o violonista barbudo, promissor compositor da cidade cuja amizade vinha de longa data. Sobressaíam o lamento incessante da cuíca e a voz quilombola da garota branca a cantar: "tire o seu sorriso  do caminho, que eu quero passar com a minha dor..."

Não entendia como as pessoas podiam se divertir no samba. Não entendia como ele próprio se esbaldara nos sambas da vida, ao som daquele batuque em transe dos rituais negros e do choro da cuíca, cujos gemidos retumbavam em cada canto do seu cérebro enquanto seus olhos injetados varriam o lugar atrás daquela puta.

As meninas rosadas e de cabelos lisos tentando vibrar o corpo como os negros e a quase completa ausência destes no local - com a exceção dele mesmo e de duas ou três mulatas riquinhas - davam à situação, e era essa a realidade de Brasília, um ar insólito, de banzo às avessas: naquele momento era o samba quem sentia falta dos negros.

O salão era espaçoso e sob as luzes com efeitos vermelhos ele era o único a sentir-se miúdo. E foi ali, dentro daquela existência mínima, que o solilóquio de cuíca em seus sentidos ganhou companhia: o batuque surdo e desregrado de seu coração acelerando ante o inevitável. Rogério, misturado ao odor de corpos estimulados, não focava mais rostos, não reconhecia mais ninguém: atravessava o samba trombando nos casais sorridentes. Parecia estar no meio da bateria da Mangueira, aquela que nunca marca os contratempos.

Enfim, parou no meio do salão, agora com os olhos focados e os ombros desanimados. Ensurdeceu. O único som que ouvia era do esvoaçar dos cabelos de Jandira, a relar suavemente o pescoço, quando ela oferecia a nuca a outro homem...

naquele minuto a vida de Rogério perdeu seu enredo.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

The American Way of Life



Reinaldo Pereira era um cara ambicioso. Ambicioso e pragmático.
Não namorou Maria, colega de infância por quem tinha certo interesse, pois estudava em escola particular e ela em pública. Ambos iam ao colégio de ônibus.


Não noivou Patrícia, grávida de um filho seu, pois ambos eram caixas de banco. Ele já costurava relações para virar gerente: "Quantas clientes importantes posso conhecer??". Aos dezenove anos, comprou seu primeiro carro: um fusca.


Aos vinte trombou com Fernanda, quarentona, doutora em Antropologia pela USP. Ficaram juntos, sem maiores laços legais ou afetivos. Aos 27, Reinaldo já era doutor, substituindo Patrícia, que se aposentara da carreira e, em determinado grau, da vida. Nessa época ele dirigia um opalão 4.1 SS.


Hoje, amancebou-se com Suzana, militante histórica do PT e Ministra da Educação. Ele descolou, nepoticamente, o cargo de Secretário de Planejamento Escolar.Nem lembra ter sido militante da TFP nos anos 70, quando tudo que almejava era conhecer alguma gerente da Daslu.
Os dois não transam há dois meses...


Ele vai, todos os dias, com revistas sobre a Dilma Roussef ao banheiro. Sai barbeado, nariz em pé, sempre sorridente. Dirige-se ao trabalho, confortável em sua Mercedez, pensando em qual carro terá quando for o 1o presidente estrangeiro dos Estados Unidos.