Escritos de Rafael Perfeito

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Antônio Bento

        
        O sansei Antônio Bento tinha 40 anos e mania de perseguição. Dentro de sua loucura, já insuportável, Bento pensou ter chegado a um desfecho muito lógico. Enganaria todos. Enganaria, inclusive,  sua paranóia esquizofrênica.
      Arrumou um cadáver no instituto de ciências e jogou seu carro ribanceira abaixo. Certificou-se de que o fogo destruíra tudo e depositou, ao longo do trajeto descendente, objetos íntimos. Inclusive o dedo mindinho no qual possuía inequívoca mancha. Deixou para trás um filho indiferente e uma mulher aliviada.
      Foi para o Japão. Arrumou passaporte, nova identidade. Começaria a vida do zero. Todos que um dia o conheceram o julgavam morto. Quem perseguiria, agora, Kazuki Satoshi Tatsuya?
     Três meses passaram-se felizes. Vivia como uma pessoa totalmente normal. Quando perdeu um emprego por cismar que seu gerente apertava demais os olhinhos, sinal claro de que o estava vigiando, teve que cortar gastos. Mudou o xampu, arrumou uma namorada de hábitos menos extravagantes e, talvez seu grande erro, abandonou o carro para andar de metrô. Ele havia, 20 anos antes, surtado, pela primeira vez, num metrô.


        
        Encarou o desafio. Sobreviver são ao metrô enterraria de vez a esperniante esquizofrenia. Aí, dentro de algum tempo, até ele esqueceria de que uma vez...   de que uma vez houve...    Antônio Bento.
       Saiu de casa. Suava frio gotas de nervoso e satisfação. O metrô estava lotado e ninguém parecia se dar conta de sua presença. Faltava uma estação para o destino. Encheu os pulmões, altivo, e sentiu-se no controle da situação. Com a face transtornada de prazer e autoconfiança, preparava-se para descer, quando pensou ter ouvido, pronunciado com sotaque japonês e ligeiro sarcasmo:

      "Bento."

        As pernas de outrora firmes passos cambalearam. O mundo todo, em silêncio profundo, depositou-se sobre seus ombros. Kazuki concentrou-se em identificar aquela voz. Teria ouvido bem?

      "Ô Beenntttôô!!!!!!!!"

        Nãoooooo!!!!!!
        Não era possível!!!! Em alto e bom som!

        "Ô BEEEEEENNNNNNNTTTTTTTÔÔÔÔÔÔÔÔ!!!!!"
Totalmente alucinado, Kazuki Satoshi Tatsuya olhou para todas as direções, mas a massa de japoneses o empurrou para fora do trem. Gritava, repetidamente: “Watashi wa Kazuki!!!!! Watashi wa Bento dewa arimasen!!!” * (Nota do tradutor: "Eu sou o Kazuki, porra! Eu não sou o Bento porra nenhuma, puta que os pariu!!")

    Correu para o banheiro mais próximo. Fitou-se no espelho. Percebeu, com terror, que Kazuki Satoshi Tatsuya encarava Antônio Bento. Ele havia falhado.

       
        Se jogou nos trilhos embaixo do trem que passava, certo de que a perseguição sofrida não era política, como sempre pensara, mas sim espiritual. E os espíritos o haviam descoberto ali, no Japão! E o chamavam pelo nome!

        Foi destroçado no chão sem saber que “Ben-tô”, em japonês, significa “marmita”.


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                Figuras de personagens de filmes de Kurosawa, google.

domingo, 4 de julho de 2010

O Olho Mágico



Desde que mudou-se de um condomínio de segurança máxima em São Paulo para a 114 sul, uma quadra residencial no plano piloto de Brasília, Mariana tomou por hábito aboletar-se na janela de seu quarto. O queixo apoiado nos bracinhos, olhando, do alto do quinto andar, os meninos de sua idade a jogar bola e as meninas a namorar nos pilotis. Seu pai, rígido e carcomido, a mãe com síndrome do pânico, nunca a deixariam descer.

Seu quê de Rapunzel não passou despercebido. Logo os adolescentes começaram a gritar lá debaixo: "desce garota! Vem brincar conosco!". Mariana só fazia erguer as sobrancelhas, soltar um suspiro e levantar os olhos aos céus, o pensamento perdido nas alturas.



A televisão era regrada. Escola? Já havia perdido o semestre com a mudança, só depois das férias de janeiro. Solitária, brincava com a criada Cida, cujas mãos acariciavam seu rosto ao mesmo tempo em que batiam, obedientes, os interfonemas vindos lá de baixo.

Seus dias assim corriam. Lá do alto já sabia onde todos os moleques gostavam de se esconder no pique-esconde e até aonde a garota do bloco em frente deixava o marmanjo da 314 enfiar as mãos.

Vivia na janela...

Mas o grande momento da semana era às segundas, quando o vizinho chegava de viagem e, por um breve momento, beijava a mulher que o esperava à porta. Mariana podia estar lendo no sofá, escrevendo cartas para alguma amiga de São Paulo ou mesmo apoiada na janela. Bastava sentir o pequeno tremor causado pelo deslocamento do elevador que voava para a porta. O marido alheio subia na mesma proporção que seus hormônios matreiros. No hall de entrada dos apartamentos, o ofegante casal não percebia a discreta sombra dos pezinhos de Mariana por baixo da porta, esticando-se em suas pontas para alcançar o olho mágico e observá-los.

Naqueles eternos segundos das segundas, se pudéssemos percorrer o caminho inverso do olho mágico e adentrar as já dilatadas pupilas de Mariana, perceberíamos seu coração aos pulos, enquanto seus dedinhos , descendo pela barriga e descolando a calça de lycra azul do corpo, iniciavam as preliminares de seu amor com o mundo externo.