O sansei Antônio Bento tinha 40 anos e mania de perseguição. Dentro de sua loucura, já insuportável, Bento pensou ter chegado a um desfecho muito lógico. Enganaria todos. Enganaria, inclusive, sua paranóia esquizofrênica.
Arrumou um cadáver no instituto de ciências e jogou seu carro ribanceira abaixo. Certificou-se de que o fogo destruíra tudo e depositou, ao longo do trajeto descendente, objetos íntimos. Inclusive o dedo mindinho no qual possuía inequívoca mancha. Deixou para trás um filho indiferente e uma mulher aliviada.
Foi para o Japão. Arrumou passaporte, nova identidade. Começaria a vida do zero. Todos que um dia o conheceram o julgavam morto. Quem perseguiria, agora, Kazuki Satoshi Tatsuya?
Três meses passaram-se felizes. Vivia como uma pessoa totalmente normal. Quando perdeu um emprego por cismar que seu gerente apertava demais os olhinhos, sinal claro de que o estava vigiando, teve que cortar gastos. Mudou o xampu, arrumou uma namorada de hábitos menos extravagantes e, talvez seu grande erro, abandonou o carro para andar de metrô. Ele havia, 20 anos antes, surtado, pela primeira vez, num metrô.
Encarou o desafio. Sobreviver são ao metrô enterraria de vez a esperniante esquizofrenia. Aí, dentro de algum tempo, até ele esqueceria de que uma vez... de que uma vez houve... Antônio Bento.
Saiu de casa. Suava frio gotas de nervoso e satisfação. O metrô estava lotado e ninguém parecia se dar conta de sua presença. Faltava uma estação para o destino. Encheu os pulmões, altivo, e sentiu-se no controle da situação. Com a face transtornada de prazer e autoconfiança, preparava-se para descer, quando pensou ter ouvido, pronunciado com sotaque japonês e ligeiro sarcasmo:
"Bento."
As pernas de outrora firmes passos cambalearam. O mundo todo, em silêncio profundo, depositou-se sobre seus ombros. Kazuki concentrou-se em identificar aquela voz. Teria ouvido bem?
"Ô Beenntttôô!!!!!!!!"
Nãoooooo!!!!!!
Não era possível!!!! Em alto e bom som!
"Ô BEEEEEENNNNNNNTTTTTTTÔÔÔÔÔÔÔÔ!!!!!"
Totalmente alucinado, Kazuki Satoshi Tatsuya olhou para todas as direções, mas a massa de japoneses o empurrou para fora do trem. Gritava, repetidamente: “Watashi wa Kazuki!!!!! Watashi wa Bento dewa arimasen!!!” * (Nota do tradutor: "Eu sou o Kazuki, porra! Eu não sou o Bento porra nenhuma, puta que os pariu!!")
Correu para o banheiro mais próximo. Fitou-se no espelho. Percebeu, com terror, que Kazuki Satoshi Tatsuya encarava Antônio Bento. Ele havia falhado.
Se jogou nos trilhos embaixo do trem que passava, certo de que a perseguição sofrida não era política, como sempre pensara, mas sim espiritual. E os espíritos o haviam descoberto ali, no Japão! E o chamavam pelo nome!
Foi destroçado no chão sem saber que “Ben-tô”, em japonês, significa “marmita”.
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Figuras de personagens de filmes de Kurosawa, google.